Uma brecha legislativa voltou a expor a fragilidade da tributação sobre heranças e doações no Brasil. Em duas decisões recentes, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), afastou a cobrança do ITCMD em casos de bens transferidos do exterior, reforçando o entendimento de que não há lei válida que autorize os Estados a tributar esse tipo de operação. Uma das decisões já foi confirmada pela 1ª Turma da Corte; a outra está em julgamento no Plenário Virtual e deve ser concluída até sexta-feira (26).
As decisões representam as primeiras manifestações do STF sobre o tema após a Emenda Constitucional nº 132/2023, que reformou o sistema tributário. Desde 2021, o Supremo já havia firmado, com repercussão geral, que os Estados não tinham competência para instituir ITCMD em doações e heranças do exterior sem uma lei complementar federal. Como até hoje o Congresso não editou essa norma, a cobrança segue suspensa.
No centro da disputa está a interpretação sobre o alcance da emenda constitucional. A Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo (PGE-SP) defende que o artigo 16 da reforma devolveu validade à Lei estadual nº 10.705/2000, declarada inconstitucional pelo STF. A ministra, no entanto, rejeitou esse argumento. Em decisão sobre uma doação feita do Reino Unido a um beneficiário paulista, ela manteve a posição do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e seguiu parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR): “A ausência de base legal a sustentar a cobrança do imposto estadual torna inviável o reconhecimento da incidência tributária, mesmo após a edição da Emenda Constitucional nº 132/2023”.
Outro processo, em segredo de justiça, envolve a transmissão de quotas de uma empresa nas Ilhas Britânicas em sucessão aberta no Brasil, com ITCMD estimado em R$ 3 milhões. Nesse caso, Cármen Lúcia reafirmou que a cobrança exige tanto lei estadual quanto lei complementar federal, voto que foi seguido de forma unânime pela 1ª Turma.
A posição da ministra segue a jurisprudência do Supremo. Para o advogado Ricardo Santos, sócio do Lefosse, não há espaço para a tese de que a emenda teria revigorado automaticamente leis estaduais já declaradas inconstitucionais. “Se uma lei foi declarada inconstitucional, é necessário que uma nova seja aprovada. Não existe constitucionalidade superveniente”, afirmou, lembrando precedentes do STF (RE 390840 e RE 346084).
O impasse tem impacto direto na arrecadação dos Estados. Em São Paulo, o ITCMD respondeu por 12% da receita tributária entre janeiro e julho de 2025, somando R$ 2,7 bilhões, 43% a menos que no mesmo período de 2024. Com a impossibilidade de tributar heranças e doações vindas do exterior, a queda pode ser ainda maior.
No Legislativo paulista, tramitam projetos para reintroduzir a cobrança, como o PL nº 7/2024 e o PL nº 199/2025, ambos ainda sem aprovação. Enquanto isso, Estados como Paraná, Pernambuco, Amazonas e Bahia já editaram novas normas locais, enquanto Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro continuam sem leis específicas após a reforma.
Em nota, a PGE-SP afirmou que recorrerá das decisões para defender a vigência da emenda e a eficácia da Lei nº 10.705/2000. A Procuradoria alega que a reforma tributária supriu o vácuo legislativo e ampliou a eficácia da legislação estadual, autorizando a cobrança do ITCMD em transmissões internacionais.