O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deve encerrar seu terceiro mandato com pelo menos R$ 387,8 bilhões em despesas fora da meta fiscal, uma das principais regras que balizam as contas públicas brasileiras. O montante, já expressivo, foi alcançado com a inclusão do programa Brasil Soberano, anunciado recentemente como resposta ao tarifaço do presidente norte-americano Donald Trump. A medida vai retirar R$ 9,5 bilhões da meta até 2026, reforçando críticas de especialistas à condução da política fiscal.
O pacote prevê R$ 4,5 bilhões em aportes a fundos garantidores e R$ 5 bilhões em renúncias de receitas do Reintegra, mecanismo que concede créditos tributários a exportadores. Ambos ficaram fora da meta de resultado primário. Para viabilizar a operação, o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), apresentou um projeto de lei complementar que precisa ser analisado pelo Congresso. A decisão, contudo, acendeu alertas no mercado financeiro, que vê na estratégia uma prática recorrente do Executivo de flexibilizar a âncora fiscal em momentos de pressão.
O Ministério da Fazenda, por sua vez, defende que 87% desse montante está ligado a medidas necessárias para corrigir distorções herdadas do governo anterior, como o calote nos precatórios aplicado por Jair Bolsonaro e a recomposição de despesas represadas, viabilizada pela PEC da Transição. A pasta argumenta que tais ações foram imprescindíveis para restaurar a previsibilidade do Orçamento e preservar gastos sociais e estruturais.
Mesmo assim, as projeções de analistas indicam que os valores podem ser ainda maiores. Estudo do BTG Pactual, assinado por Fábio Serrano, calcula que R$ 334 bilhões já ficaram de fora da meta entre 2023 e 2025, e projeta que outros R$ 55 bilhões em precatórios devem ser excluídos em 2026, elevando o total a R$ 389,7 bilhões. Levantamento de Tiago Sbardelotto, economista da XP Investimentos e auditor licenciado do Tesouro, chega a números semelhantes, apontando R$ 387,76 bilhões. Ambos destacam o risco de a conta crescer com novas concessões feitas pelo Congresso, especialmente às vésperas das eleições presidenciais de 2026.
Os valores englobam uma série de medidas, como o reajuste do Bolsa Família em 2023, o pagamento dos precatórios represados, o socorro financeiro ao Rio Grande do Sul diante da calamidade climática e a compensação a aposentados vítimas de fraudes no INSS. Para Serrano, o pacote do tarifaço foi calibrado, mas a retirada da meta abre espaço para pressões políticas: “A exclusão da contabilização elimina uma trava que limitava o tamanho da medida, e o risco é que ela seja ampliada durante a tramitação no Congresso”.
Esse mecanismo, segundo os especialistas, fragiliza a própria lógica da meta fiscal. Sbardelotto alerta que, ao multiplicar exceções, o indicador deixa de refletir o esforço real de equilíbrio das contas públicas: “O governo pode até cumprir a meta no papel, mas o déficit efetivo, que pesa sobre a dívida pública, continua sendo muito maior”.
O histórico recente confirma a prática. Em 2023, o governo ampliou o antigo teto de gastos em R$ 145 bilhões, valor viabilizado pela PEC da Transição e que não entrou no cálculo da meta. No mesmo ano, o STF autorizou o pagamento de R$ 92,4 bilhões em precatórios, também fora da contabilidade. Parte desses pagamentos permanece excluída até hoje, após proposta do Executivo para adiar por uma década sua reintegração plena à regra fiscal. Agora, com o Brasil Soberano, o governo não apenas ampliou o rol de exclusões, como também deixou de contabilizar renúncias de receitas — caso do Reintegra, que representa R$ 5 bilhões a menos em arrecadação registrados como se fossem receita.
Algumas dessas exclusões foram respaldadas por decisões judiciais, como no caso dos precatórios, ou autorizadas por lei, como a PEC da Transição. No entanto, analistas afirmam que a ampliação indiscriminada enfraquece o arcabouço fiscal. Para João Pedro Leme, da Tendências Consultoria, apenas as despesas ligadas a crises humanitárias, como a calamidade no Rio Grande do Sul, ou à quitação de dívidas judiciais podem ser justificadas. “O atual estado das contas públicas diverge daquilo que conta para a meta. A regra fiscal passa a refletir uma ficção, em que parte significativa dos gastos é ignorada”, afirma.
Para os especialistas, o correto seria incluir os custos do tarifaço dentro da meta, aproveitando a alta da arrecadação com leilões de petróleo e dividendos de bancos públicos. Isso obrigaria o governo a cortar despesas em outras áreas, ajustando prioridades. O problema, segundo integrantes do próprio Executivo, é que a margem orçamentária está cada vez mais comprimida por gastos obrigatórios, como previdência e pessoal, reduzindo a capacidade de investimento e de custeio da máquina pública.
Nesse cenário, cresce a percepção de que a meta fiscal tem sido usada mais como instrumento político do que como guia real da política econômica. Ao insistir em exclusões sucessivas, o governo mantém uma aparência de responsabilidade fiscal, mas deixa para o mercado a conta da deterioração da dívida pública. Como resume Leme, “o Orçamento é rígido, mas isso deveria levar à revisão de prioridades, e não à criação de exceções que enfraquecem as regras”.