Views
Um mês após o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciar um pacote de tarifas contra produtos chineses — medida que intensificou a guerra comercial entre as duas maiores economias do mundo —, o Brasil começou a colher frutos da nova configuração global. Setores como calçados, soja, alimentos e até móveis já registram aumento de demanda por parte de importadores americanos, que buscam substituir fornecedores da China por parceiros mais confiáveis e competitivos. Ao mesmo tempo, a China ampliou a compra de soja brasileira, reforçando os impactos positivos para o agronegócio nacional.
Segundo empresários e entidades do setor, redes varejistas dos EUA têm intensificado contatos com fabricantes brasileiros em busca de alternativas para itens que vão de vestuário e alimentos a máquinas industriais. Essa movimentação também impulsiona o otimismo em setores como o têxtil e o moveleiro, que veem nas tensões globais uma janela para reposicionar o Brasil no comércio internacional.
Um dos principais beneficiados é o setor calçadista. A Usaflex, que produz até 32 mil pares por dia no Rio Grande do Sul, já percebeu o aumento da procura por parte dos americanos. De acordo com o CEO da empresa, Sergio Bocayuva, a elevada taxação sobre produtos chineses forçou os EUA a buscar novos fornecedores. “O Brasil já foi líder nesse mercado e pode voltar a ser um grande exportador de calçados para os EUA”, afirma. Em março, o Brasil exportou 1 milhão de pares aos americanos, movimentando US$ 17,5 milhões — um salto de 34,8% na comparação anual, segundo a Abicalçados.
Ao mesmo tempo, cresce a preocupação com o efeito colateral desse novo cenário: a invasão de calçados chineses no mercado brasileiro. Com dificuldades para acessar os EUA, a China tem redirecionado sua produção excedente a países emergentes. Em março, o Brasil importou 5 milhões de pares, sendo 2,55 milhões apenas da China — alta de 51,7% sobre o mesmo período do ano passado. Haroldo Ferreira, presidente da Abicalçados, alerta para o risco de dumping, quando produtos são vendidos por preços artificialmente baixos, prejudicando a indústria local.
No setor alimentício, a Bella Giornata, da Della Foods, fechou a exportação de cinco contêineres de bebidas em pó para os EUA, um carregamento estimado em R$ 2 milhões. A CEO, Pamela Manfrin, prevê dobrar o volume comercial com os americanos até o segundo semestre, impulsionada por um crescimento de 50% na demanda no primeiro trimestre e uma projeção de alta adicional de 20% nos próximos meses.
O agronegócio também se beneficia. De janeiro a março, os embarques de soja em grão para a China cresceram 34%, somando US$ 6,7 bilhões. A Abiove confirma o aumento dos pedidos por parte de Pequim, que tenta contornar as restrições ao produto americano. No entanto, o diretor da entidade, Daniel Furlan Amaral, ressalta a importância de políticas públicas que garantam a industrialização da soja no Brasil e preservem as margens no mercado interno.
A indústria de móveis, por sua vez, também vislumbra oportunidades. Atualmente, os EUA representam 27,6% das exportações do setor. Com a nova dinâmica global, a Abimóvel estima um crescimento adicional de até 47,9% nas vendas, podendo alcançar US$ 346,5 milhões anuais em produtos acabados.
Apesar das boas perspectivas, o ex-secretário de Comércio Exterior Welber Barral, hoje sócio da consultoria BMJ, adverte que a guerra comercial impõe riscos à estabilidade dos fluxos globais de investimento. “Empresas levam anos planejando, e uma mudança brusca no cenário pode comprometer todo o modelo de negócio”, avalia. Ele também reforça o risco de dumping por parte da China, que segue com superprodução em setores como aço e produtos químicos: “Se os produtos não vão para os EUA, serão redirecionados à Europa ou a mercados emergentes como o Brasil”.
Diante disso, o Brasil vive um momento ambíguo: por um lado, ganha espaço como fornecedor alternativo no comércio internacional; por outro, precisa proteger sua indústria da concorrência desleal e planejar políticas que garantam competitividade de longo prazo.