A Ética Empresarial é um campo que se situa no encontro entre a Filosofia Moral e as práticas de negócios

Por Edson Barbero 

A Ética Empresarial é um campo que se situa no encontro entre a Filosofia Moral e as práticas de negócios. Mais que somente um espaço reflexivo, serve como bússola para que naveguemos no complexo mundo corporativo. Ao estudar e viver a ética, passamos a nos guiar para uma vida profissional e pessoal mais plena, conquanto também mais crítica. Sem considerações de ordem ética é difícil responder até mesmo a questões simples, como “de onde vem este produto que estou comprando?”, “quem fez esta camisa de modo a torná-la tão barata?” ou “em que empresas os meus investimentos estão sendo aplicados?”. Apesar desta relevância, há vozes refratárias à incorporação de discussões mais críticas sobre o papel ético de dirigentes e empresas. Na pressa de sermos “práticos” muitos de nós nos tornamos rasos e insensíveis. Este fenômeno de incompreensão sobre como decidimos e agimos em um contexto de baixa reflexão humana tem sido denominado “cegueira ética”.

A tese central deste breve ensaio reside na premência de se adicionar elementos éticos ao debate sobre os papéis de executivas e executivos e, em especial, na educação para negócios. Em vez de tão-somente entender-se a gestão empresarial como técnicas, funções e processos ou como competências unicamente instrumentais, entendo que a ação gerencial também é uma prática relacionalreflexiva e moral. Refere-se, afinal, a sobre quem somos e sobre como nos relacionamos com as outras pessoas. A experiência corporativa não é apenas formada por sua dimensão racional e econômica, mas também por afetos e relações humanas. 

O debate empresarial tem tangenciado a Ética. Apesar disso, não a enfatiza adequadamente, posto que a reduz às normatizações e visões cartesianas. Fala-se sobre ESG, sustentabilidade, inclusão e diversidade, compliance e outros temas relevantes, mas o debate mais reflexivo é frequentemente tratado com superficialidade: de tanto falarmos sobre Ética, o termo tornou-se desprovido de sentido. Apenas nos fundamentamos nos regramentos protocolares como forma de incorporar a Ética na prática empresarial. Contudo, escrever um código de conduta, não obstante necessário, é insuficiente para que tenhamos ações mais éticas. 

O vazio reflexivo abre portas para problemas reais 

Ao ministrar o tema Ética Empresarial, não é incomum que me perguntem: “Mas isso não é teórico”? “Não seria apenas Filosofia?” Estas e outras perguntas retratam o olhar que frequentemente temos, no universo corporativo, sobre Ética. Convido você a reler alguns dos mais clássicos livros sobre gestão - tais como os publicados por Michael Porter - e encontrar se há algum aceno aos impactos éticos, por exemplo, do uso do poder de barganha ou sobre como uma empresa usa suas vantagens competitivas. 

Este vazio reflexivo pavimenta o campo para práticas danosas. Não pensar sobre Ética implica em estágios de ignorância inconsciente perigosos. Certa vez, ao mediar um debate no contexto de um triste desastre ambiental, um executivo me confidenciou: “Em minha carreira fui treinado a examinar os números (...) nunca a olhar para as comunidades no entorno (...) eu era cego a esta dimensão”. Esta e outras falas são notórios exemplos da cegueira ética que desafortunadamente prevalece. Pessoas que não se aprofundam no tema Ética acabam por não compreenderem as implicações de suas ações. 

Somente com a elevação da consciência moral trilharemos a estrada que potencialmente nos levará a empresas melhores. Todos e todas, afinal, convivem com suas próprias premissas sobre o mundo. “Todos os empresários são filósofos em certo sentido (...) [pois têm mentalmente] uma estrutura dentro da qual interpretam suas experiências; o problema é que frequentemente não refletem sobre tais premissas e muito menos as redefinem. A ausência do pensamento crítico acaba por torna-nos prisioneiros inconscientes de visões de mundo irrefletidas. Os estudantes que me questionam sobre se é Ética seria “apenas Filosofia” têm por certo suas próprias cosmovisões não pensadas. 

De onde vem esta irrelevância consentida e tácita da Ética no mundo empresarial? Vivemos influenciados por um entendimento segundo o qual os negócios seriam apartados da Ética. Seria como se vivêssemos em um sistema econômico amoral, isto é, à parte das reflexões éticas. As empresas seriam “neutras” eticamente e isso as liberaria da difícil necessidade de pensarem os diversos impactos de suas decisões. A Ética, de acordo com este entendimento, seria um espaço unicamente tratado pelas famílias, vidas privadas e regramentos públicos: “- Aqui, nesta empresa, queremos resultados” (...) “the business of business is business”.  

Segundo tal entendimento, as empresas seriam entidades unicamente racionais e econômicas separadas do restante da sociedade e nas quais não haveria propriamente pessoas em sua inteireza humana, mas tão-somente recursos produtivos e indivíduos-máquina egoístas. No mesmo sentido, infelizmente, grande parte das teorias sobre Gestão Empresarial adota uma perspectiva unicamente funcionalista, que visa tão-somente a melhorar a eficiência das organizações, identificando as técnicas racionais que promovem esse objetivo, mas pouco analisando os impactos sistêmicos de tais organizações. Este foco unicamente nos elementos racionais e técnicos – não obstante importantes – tende a ignorar as dimensões morais e os impactos de uma organização nas vidas humana e na natureza. 

A conhecida frase de Milton Friedman, que assevera que a única responsabilidade de uma empresa seria enriquecer seus acionistas, é seminal deste isolamento entre nossas relações humanas e o universo dos negócios. Esta "falácia da separação” sugere que as decisões empresariais deveriam ser tomadas independentemente de considerações éticas. A frase de Friedman é muito mais que uma proposição técnico-científica ou um achado científico-positivista da realidade; é um manifesto axiológico (note o termo “responsabilidade”) que impulsionou o isolamento empresarial perante a sociedade e natureza, frequentemente entendidas como “externalidades”. Em outras palavras, tornamos “externas” - daí também secundárias - dimensões tais como o equilíbrio social e a sobrevivência de nossa espécie. 

Esta visão “educou” – muitas aspas aqui - inúmeros executivos e executivas. São pessoas cujo referencial tão-somente aponta para a maximização do sucesso em suas próprias carreiras e para o crescimento da riqueza de acionistas. Guido Palazzo explora este conceito como “desvinculação moral”: os indivíduos no mundo empresarial frequentemente se dissociam das consequências éticas de suas ações. Segundo tal autor, por meio destes “mecanismos de desvinculação”, como distorções eufemísticas das ações, desumanização das vítimas ou a atribuição de responsabilidade a outros, as pessoas de uma empresa podem se engajar em comportamentos antiéticos sem enfrentar a angústia decorrente da imoralidade de suas próprias ações. 

A perigosa mentalidade de objetivo único orientado à riqueza de acionistas é vividamente ilustrada em exemplos contemporâneos. Um exemplo notório ocorreu no sul do Brasil, onde a indústria vinícola, notabilizada por sua tradição, foi manchada pela descoberta de trabalho em condições análogas à escravidão. Além disso, o assédio sexual e moral no ambiente de trabalho continuam a ser uma preocupação ética significativa. Casos notórios, como os relatados no movimento #MeToo, revelaram como culturas tóxicas podem perpetuar o sofrimento das pessoas. Casos de suicídio no ambiente de trabalho parecem ser resultado, entre outras causas, de um lugar corporativo onde a solidão tornou-se a regra: um colega se deprime, mas ninguém lhe oferece a mão. 

Os excessos na remuneração de executivos são outro exemplo. O Economic Policy Institute (EPI) americano reportou que, em anos recentes, a relação entre a remuneração dos(as) CEOs daquele país e a das pessoas trabalhadoras médias nas maiores empresas atingiu cifras assaz altas. Dados apontam que a relação Compensação-CEO/Média-demais-trabalhadores foi de 21 para 1 em 1965 a 320 para 1 em 2019. 

Como compreender a cegueira ética? Uma ação antiética é frequentemente diferente daquilo que popularmente imaginamos. Quando estamos diante de uma decisão com teor moral nossa interpretação tende a nos conduzir aos seguintes raciocínios: (i) os antiéticos são seres cruéis e esta crueldade individualizada seria a integral responsável pelos delitos, sem reflexões sobre as razões mais estruturais sobre as falhas, (ii) “Eu nunca faria isso! (...) eu sou ético (...) os outros não” em uma superestimação de nossa própria conduta e (iii) com o passar do tempo, nossa capacidade de notar os tons éticos em nosso cotidiano diminui: naturalizamos comportamentos por entendermos que “é assim mesmo”. 

Neste contexto, vale citar o conceito Arendtiano de “Banalidade do Mal”, termo pouco debatido em gestão. A essência deste conceito reside na ideia de que o mal pode ser cometido não necessariamente por indivíduos tidos como malignos, mas também por pessoas que cumprem ordens ou seguem padrões considerados “normais”. Para Arendt, um burocrata sem pensamento profundo - como o horrendo caso do criminoso nazista Adolf Eichmann - pode participar de um dos maiores crimes da história sem refletir. Para Arendt, o humano deve buscar conhecimento ético no sentido intrinsecamente ligado à nossa potencial capacidade de compreender o mundo e as dores humanas, não apenas em termos factuais. Em sua visão, conhecer é menos sobre acumular informações e mais sobre entender as complexidades da vida, um processo que requer um envolvimento crítico com o mundo. 

A Ética Empresarial vai, assim, além do cumprimento de regulamentações. Trata-se de cultivar senso de responsabilidade e construir vínculos humanos. A falada distinção entre Ética e Moral, embora aparentemente menor, oferece uma lente importante para examinar as práticas empresariais. A Ética, com suas raízes no pensamento reflexivo, e a Moral, enraizada nas normas e costumes, juntas fornecem referências para as ações humanas em corporações. 

O conceito de moral refere-se ao sistema de valores que se traduzem por princípios e regras cuja aplicação é considerada um dever. A pergunta da moral é: “Como devo agir?” Na perspectiva psicológica, moral corresponde ao sentimento de obrigatoriedade. Em contraposição, o conceito de Ética refere-se aos elementos mais reflexivos, a saber: “Que vida eu quero viver comigo e com as outras pessoas”? A reflexão ética implica na construção de nós mesmos e das organizações nas quais vivemos. A Moral e a Ética são mutualmente dependentes: “um indivíduo somente agirá conforme princípios e regras (morais, portanto), se fizerem também sentido para ele ou ela no plano ético”

Ética só faz sentido na presença do outro, seja uma pessoa, um ser vivo ou até o nosso (único) planeta. Implica em alteridade, tal como nos dizem Burber e Habernas. Martin Buber, em sua obra seminal "Eu e Tu", apresenta uma visão de diálogo que transcende a simples troca de informações, destacando a relação entre os indivíduos como uma dimensão fundamental da existência humana. Para Buber, diálogo ocorre quando nos relacionamos com o outro não como um "objeto", mas como um "tu", um ser com sua própria dignidade. Esta abordagem exige uma forma de empatia profunda, na qual a escuta ativa e a abertura para o encontro genuíno são primordiais. A liderança desprovida dessa capacidade para o diálogo é, portanto, uma liderança que se distancia da realidade vivida pelas outras pessoas, correndo o risco de se tornar autoritária e insensível. 

Jürgen Habermas, por sua vez, oferece uma perspectiva complementar através de sua teoria da racionalidade comunicativa, argumentando que a capacidade dos indivíduos de alcançar o entendimento mútuo é essencial para a coordenação social e a legitimidade das decisões. Segundo tal filósofo, a racionalidade comunicativa se baseia no pressuposto de que todos e todas são capazes de expressar suas necessidades, desejos e preocupações. O outro não é um “recurso”, é uma pessoa. Líderes que carecem dessa capacidade comunicativa-dialógica estão mais propensos(as) a impor visões unilaterais e ignorar o bem-estar coletivo. Em resumo: nós não somos, nós “intersomos”. 

Qual a responsabilidade das escolas de negócios? 

As escolas de negócios desempenham um papel basal na formação de pessoas líderes, posicionando-se como “incubadoras” de conhecimento e valores que potencialmente orientarão as decisões destas pessoas. Com a emergência de atos antiéticos por executivos e executivas, surge a pergunta: até que ponto essas instituições são responsáveis pelos comportamentos antiéticos de seus ex-alunos e ex-alunas? Seria nos arcabouços aprendidos nas salas de MBA e Graduação que se constroem as referências éticas? 

A resposta é sim, ainda que parcialmente. Mas nossas business schools ainda têm muito o que trilhar neste quesito. Muitas das discussões sobre educação para Ética pressupõem equivocadamente que os indivíduos automaticamente saberiam o que devem fazer: - É de berço, dizem muitos. No entanto, as pessoas tomadoras de decisão nem sempre reconhecem que estão enfrentando uma questão moral e nem quais os verdadeiros impactos dessas decisões. É preciso educar para Ética. 

Os programas educacionais para negócios têm sido marcados por maior ênfase nos aspectos quantificáveis e instrumentais, influenciados pela teoria da firma, concepção que prioriza a maximização do valor para os acionistas, muitas vezes em detrimento – ou até esquecimento - de considerações éticas e sociais. Neste contexto, a Ética tem sido tratada como uma matéria complementar “menos importante”, desvinculada do núcleo central dos cursos, quando, na verdade, deveria ser pilar fundamental. Esta ênfase unilateral em resultados financeiros tende a direcionar estudantes a uma visão de mundo demasiadamente restrita, na qual o sucesso é medido exclusivamente por lucros. 

Aqueles que desejam um mundo melhor devem clamar por um mudança de mindset. A boa notícia é que estamos bem acompanhados. Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia, critica a visão restritiva da economia como ciência desprovida de considerações éticas. Para tal economista, a separação entre Economia e Ética não apenas empobrece o entendimento da própria economia, mas também limita nosso potencial para abordar questões de justiça social e bem-estar humano. Swanson e Fisher (2008) apresentam um modelo de como a ética pode ser ensinada em escolas de negócios ao propõem que a Ética deva ser ensinada através de uma abordagem que inclua tanto teoria quanto prática, possibilitando aos alunos e alunas verem como as decisões éticas são aplicáveis no mundo real dos negócios. Melé (2008) sugere que as escolas de negócios devem ser agentes de mudança positiva, ensinando Ética não como um tópico adicional ao currículo, mas como uma parte integrante de todas as disciplinas de negócios, de modo transversal. Há, portanto, muitos caminhos possíveis. 

Apesar dos desafios supracitados, encerro este breve ensaio dizendo que sou otimista no que tange à Ética, notadamente no longo prazo. Prefiro viver os dilemas éticos do Século XXI do que aqueles do XIX. Distante das premissas clássicas do homus economicus – modelo reducionista que advoga que seríamos seres unicamente racionais, egoístas e utilitaristas - acredito que as pessoas podem ser boas, colaborativas e empáticas, não obstante sejam complexas. É possível que vivamos bem juntos na sociedade e nas empresas: “We can all get along”

Sim, cometemos inúmeros desacertos individuais e estruturais. Sim, existem pessoas com tendências altamente egoístas – e até socio patológicas - que infelizmente permeiam o mundo corporativo. Também é verdade que as empresas muitas vezes praticam modos de gestão que levam a confrontos humanos, adoecimento mental, alienação, discriminação, assédios, desastres ambientais e outras práticas maléficas. Porém, sem altas dores de coragem não é possível gerarmos mudanças. Há também inúmeros esforços feitos por empresas que merecem reconhecimento. Talvez estejamos vivendo uma geração que incorporará cada vez mais – mesmo que de maneira paulatina – esta visão mais profunda do papel das empresas na sociedade e no planeta.

Edson Ricardo Barbero é professor do Mestrado Profissional em Administração da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP). Doutor e Mestre em Administração de Empresas pela Universidade de São Paulo, onde também se formou em Engenharia de Produção. 

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